sábado, 21 de março de 2015

Dois reizinhos (Ou: A Capa rota) (Ou: Descobertos)

Eram dois reizinhos gêmeos que, de mãos dadas, ficavam a julgar o povo que por eles passava.
Credo, credo, diziam eles. Nem por mil moedas queria este ninguém a morar em nosso reino.
Credo, credo, diziam eles. Nem por mil cavalos queria este alguém, que de nada serve, a nos servir em nosso reino.
Credo, credo, diziam eles. Credo, credo.
Os reizinhos gêmeos ficavam a torcer a cara. Desviavam o olhar com desdém e nojo.
Vez ou outra, vinha um desavisado e lhes estendia a mão.
Viravam as faces, os pobres monarcas, e , torcendo ainda mais o próprio bico, deixavam a mão mal estendida para que o outro se curvasse.
Mal sabiam eles, os pobres monarcas de capas rubras, que o reino que julgavam ter, não existia. Que talvez não todos os passantes, mas, os melhores sabiam que estavam nus em seus tronos de mentirinha.
Mal sabidos reis gêmeos. De mãos dadas iam tomando um rumo feio na vida. Onde a solidão habita o íntimo e a amargura domina o coração. E, ao viverem na escassez da razão, na doutrina do mal amor, deixavam passar por eles gente de verdade, almas de verdade, reis de verdade.
Dois reizinhos bobos, da cara retorcida, enxergavam tão somente o ego que dormiam em ruínas.
Dois reizinhos tolos, da capa rubra e rota, mal sabiam eles que sua nudez já estava descoberta.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Bloquinho (Ou: Para não mentir para você)

Queria ser três para dar conta de si,
para ser poli, muitas, várias ações, canções e preenchimentos.

Queria ser, além de ela mesma, algumas. E, assim, sentir menos culpa.
Menos culpa por ser feliz, menos culpa por ser infeliz,
menos culpa por ser pouco, por ser bipolar e não contar.

Menos culpa por não dizer abertamente que assim é.
Menos culpa por não cuidar,
por sentir inveja
por sentir capricho
por sentir tudo isso, agora, e daqui a pouco não sentir.

Deveria contar logo e acabar com isso.
Deveria, mas é carnaval e o bloco está na rua
e as caras estão pintadas e ela tem medo

Queria ser três para deixar de ser bi(polar)
tri.
Queria ser tri.
Tripudiar da vida.
Triplicar sua coragem.
Tri exemplificar suas noções.

Queria sentir menos culpa. Seria um avanço,
uma corrente a soltar-se do pescoço.
Queria dizer: não me sinto a vontade com você. Para,então, dizer: não me sinto a vontade de viver

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Desordem (Ou:Nudez)

Que calada, morra sua angústia
E sendo você, tão franca e burra
que nada mais execute além da própria morte.

Que sentada diante de seu medo
tome, em cálice negro, seu pânico,
(suas ânsias e suas loucuras)
e que nada mais encante a não ser sua própria sorte.

E vai então pelas beiradas
em caminho tortuoso
ser o que sempre foi:
fracasso, nudez e desordem.

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Acorrentada (Ou: Cinema) (Ou:A história de Mariana)

Mariana,

Que fique eu, de tal mal modo (e tão somente), a rondar teu pensamento
que, ao lembrar-se de mim e de meus segredos, fiquem cheios, teus olhos fundos.
E, ao acordar, a cada manhã, reviva eu em tuas palavras e desejos
a ponto de acordar teus vizinhos com tua música
e desenhar, com recortes, em tuas partituras.

Que tua angústia cesse, no entanto
e tanto e tantas vezes
que tua liberdade seja a de outrora
e teus passos bem largos por horizontes sem fim.

Que teu caixote se abra
a ponto de sair como bala,
de caminhar para frente,
de ser você, quem sempre foi
e fique eu em teu coração e tua mente.

Beijo-te mil vezes
como em partida
mas fico, fico, fico
e te liberto, enfim...

Com forte abraço,
Jairo (Teu irmão)


segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Teresa cansada (Ou Teresa de saco cheio) (Ou Teresa vai a luta) (Ou só Teresa, mesmo)

Teresa cansou-se de tal modo de não saber de nada que decidiu-se pela total lucidez.
Tomou nas mãos seu casaco e suas galochas, e foi dar uma volta por entre seus rins.
Achou ali uns restos dela mesma: coisas de quatro ou cinco anos atrás.
Viu memórias líquidas e infantis. Ao perceber seu fígado intacto, tomou novo rumo na vida.
Resolveu o resto com dois goles de vodca.

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Líquido

Tomou um gole de veneno bem doce
desses que descem quentes na garganta.
Arrotou uma bossa quase morna
um descaroço, um desconforto

quase teve um calafrio doído
um calabouço no pescoço
teve pudor de ser ele
teve ardor de ser menos

Decidiu-se por si mesmo.
Decidiu-se por ser um poeta escroto
escreveu uma linha bem sangue
e percebeu que o veneno fazia efeito

Tomou um gole de veneno bem doce
desses que descem sexo na garganta.
Arrotou uma bossa quase prenha
um desalento, um desperdício.


terça-feira, 12 de agosto de 2014

Estação

Decidiu-se pelo desapego.
Tal decisão exige, no fundo, dedicação.
Pensou consigo: é preciso consciência.
E conscientizou-se.

Partiu para o desapego.
Tal decisão exige, no fundo, coragem.
Pensou consigo: é preciso utopia.
E sonhou em larga escala.

Chegou ao desapego.
Tal decisão exige, no fundo, frieza.
Pensou consigo: é preciso liberdade.
E percebeu-se escravo.

Não poderia ir a lugar algum sem toda a bagagem.
Por isso, pegou todas as malas, colocou-as em um vagão e disse: vão.
O desapego que podia exercer não era sobre si e sim sobre o outro.
Mas não ficou na estação. Voltou para casa. A pé.

Tinha feito o que podia. Libertou seus pertences por crer que não eram dele.
Disse aos seus: vão embora. Não precisam mais de minha rota. Me custa muito dizer que preciso.
E os seus partiram, também.
Olhou-se no espelho e viu-se só.
Mas a solidão poética dos que devem viver só.
E escreveu. Escreveu um texto velho, bem velho.
Leu e disse: Era a razão um algoz muito severo. Viva eu, agora, a fluidez.